domingo, 18 de agosto de 2013

SOBRE O DESVARIO NA LÍRICA - por Alexandre Cimatti


Sobre o desvario na lírica












PERFURME




eu senti seu perfume no ar
eu vi o lume primeiro do seu olhar

eu senti ciúme antes de você sair
eu pedi pra você ficar, pra você voltar

era cedo, era tarde, era madrugada
um bolero canta, lua doida na sala

pareço ouvir sua fala e mais nada
só tenho a noite das suas palavras

eu peço a Deus que volte pra casa
o lume do olhar que eu vi primeiro

que leve o ciúme o mesmo perfume
que você deixou perdido no ar




 Sim, no poema, há que se falar de amor, de ciúme, de encontros e despedidas… sim, por que não? Porém, o poema, por ser engenho, precisa de técnicas precisas que agradem aos ouvidos – poema é sonoridade antes de tudo – depois de ter vida, por ser arte. Por isso, este poema de Guerá Fernandes, assim como tantos outros dele, merece ser lido com especial atenção e cuidado; enquanto o eu lírico vai narrando uma estória de encontro e despedida, com direito a fascinação e dor da perda, eu senti seu perfume no ar / eu vi o lume primeiro do seu olhar // eu senti ciúme antes de você sair / eu pedi pra você ficar, pra você voltar” vai fazendo o jogo do poema, lhe acrescentando musicalidade ao buscar coincidências (perfume, lume, ciúme) sonoras – acho que estão bem claras – e, por que não, semânticas – acho que podemos bem relacionar o fogo do “perfume, do lume (óbvio) e do “ciúme” quando acendem; além de usar a rima, como é mais comum, só que de modo refinado, coincidindo um substantivo: “seu olhar“, com um verbo: “voltar“; e, mais uma vez, abusar da semântica ao aproximar o sentir físico “senti seu perfume” do sentir passional “senti ciúme” – e isto não é pra qualquer um.

 Logo a seguir, o poeta passa narrar o terror e o descontrole, em desvario, de quem não aceita o que acontece, o que está totalmente fora de seu controle: era cedo, era tarde, era madrugada / um bolero canta, lua doida na sala // pareço ouvir sua fala e mais nada / só tenho a noite das suas palavras” ao mudar o tempo dos verbos de pretérito perfeito para pretérito imperfeito: “senti” para “era”; o que dá a impressão de que o eu lirico passa a divagar consigo em vez de manter um “diálogo” com o objeto de seu discurso “você” – pronome, aliás, muito usado em canções brasileiras, como se o eu lírico conversasse intimamente com seu objeto; podendo, assim, ligar também o poema aos clássicos da MPB -; e, mais adiante, para o presente: “canta”, continuando com uma oração sem verbo, mas que dá a entender, por elipse, que continua no mesmo tempo da oração anterior; no verso seguinte, o tempo verbal no presente continua em “pareço ouvir / tenho”, o que acentua muito mais a impressão de desvario e divagação solitária, como se o eu lírico, num crescendo, fosse tomando todo o espaço e o tempo, com o objeto ficando totalmente em segundo plano: o sentimento que o poeta descreve se torna muito mais importante que o contexto.

Além disso, ainda no mesmo trecho, o eu lírico dá entender de que está só, lembrando do que houve, apesar de dialogar com seu objeto como se estivesse ainda presente: “pareço ouvir sua fala e mais nada/só tenho a noite das suas palavras”.

Isso sem mencionar as personificações: “um bolero canta, lua doida na sala”, que também indicam a falta de controle desencadeada por uma partida, e a genial metáfora usada para descrever a lembrança de que se teve e se apreciou: “só tenho a noite das suas palavras”, outro indicativo de solidão; além das rimas baseadas em tonacidade ”madrugada / sala / fala / nada / palavras”… repito: não é pra qualquer um.

Pra fechar o poema, Guerá mostra o eu lírico mais em si: “eu peço a Deus que volte pra casa / o lume do olhar que eu vi primeiro // que leve o ciúme o mesmo perfume / que você deixou perdido no ar” ao descrevê-lo aceitando, na medida do possível, o que não está sob seu controle, ou seja, pede a Deus que lhe ajude a conseguir de volta o que já não tem mais, algo que só pode ser dele: “o lume do olhar que eu vi primeiro” e que, ao que parece, ainda não teria encontrado seu  pouso: “que você deixou perdido no ar”.

Este poema representa bem os “delírios” das paixões e dos desencontros, vida obrigatória em qualquer lírica, e o engenho, faculdade primordial pra qualquer poeta.



                              Por Alexandre Cimatti