A HISTÓRIA E OS OUTROS
Todo sentimento e as palavras arredias
A escola das tiranias enquanto ríamos
Lençóis e toalhas avessas, v de vespas,
Abelhas ásperas, ostras escorregadias
O teatro se explicando: rainha mata zangão
As montanhas de que são capazes os olhos
Os grilos, as cigarras, sim e os sapos na lagoa
Silêncio por dentro canta ão de solidão
E o rio mergulhado de triste pela noite
E até os outros animais de noturno canto
Também se calaram diante daquela hora
O amor nascer no remanso da madrugada
Os bois pastando na relva no sem-dia a dias
Na cinza neblina minha, no verde da aurora
PAPO CABEÇA
Você é só um palhaço!
Você é só um palhaço!
Assim mantém sua máscara,
não se meta no espaço...
Não rapte-me, não capte-me,
não dê ouvidos a camaleoa.
Viver é quase isso.
Um dia roa a roupa,
desfila na avenida de rei!
No outro eu nem sei,
e o papo soa naquilo...
No outro nem à toa,
você continua vivo.
Viver é quase isso.
(Stefan Rohrer)
A FÔRMA E A FORMA
A fôrma e a forma;
apregoa o realejo,
na obra se transforma
o turvo pelejo.
Poeta Dom Quixote,
por fado ou faro,
estoura o rabiote
com seu verso raro.
Remove seu ácaro,
inventa fronteiras
de frases-abelhas...
Mas quem tem pássaro
que não doura a gaiola,
os touros e a corola?
EM TORVELINHO
(Anselm Kiefer)
Não quero mais as soluções fáceis do corpo,
arrepiar as sensações e o pó de algum sopro.
Por muito pouco tão pouco a medida do outro
lado de um deus que a trégua me fez imitar,
eu que do amor só aprendi a andar...
(E eu que só queria as palavras, as árias,
o som do canto das sereias imaginárias.
E assim a princesa que dormia acordar.)
Vem, tristíssima poesia de paisagens!
Não quero dizer mais nada. Sou imagens.
Sonhos são sombras operando o desacerto,
o torvelinho no caminho das viagens.
Representar emudeceu de molho e zelo
a beleza no olho e o elo de não sabê-lo.
(Rebecca Horn)
JOGO DE CENA
(Gerhard Richter)
Do bote ao corte do mote recorte o subtexto
por mais que em iguarias banqueteie-se a vidência
e de escuros subterfúgios nasça o texto
do embuste diário do in-vento em clara evidência.
Elementos suspeitos vício e intertexto
de reverberadas pausas soam em reticência
como quem pisa o chão e nem avisa o contexto
se assim se improvisa não por reverência.
No jogo de cena sublinha-se um segredo:
entre o quando e o onde rio desse enredo
silencioso desafiará a inteligência
ainda que se finja a dor na soberba ciência...
Alinha-se a linha, amarra-se o dedo:
- Que nada me queime na língua a prudência
O VIAJANTE
O homem é mais macaco que águia.
O mais valente, o mais forte.
Assim mesmo, teme o sem-asa,
seu riso entre os dentes, seu porte.
O homem é vinho em pote de mágoa;
desdenha inocente, sina e morte,
fim a esmo, ferro que abrasa,
ainda que impunemente seu corte.
‘O pródigo sempre volta pra casa’
recita pungente a máxima,
sem mais contar com a sorte.
O homem na busca da sede vária;
o homem livre de cofre e estátua:
- Houve um dia um sol ao norte...
VIAGEM DE VOLTA
Eu não sei bem essas receitas,
promessas se fiz nunca paguei.
E que outras luzes dessas ruas
adormeçam as cidades que sonhei;
sem mágoas, nem fantasmas sou:
atravesso a noite e o luar.
Eu fui, voltei, e nem bem cheguei
tô eu indo antes mesmo de voltar.
Aqui ou lá eu só quero chegar!
Eu estou a espera e olho a esmo
assim chegando eu já a partir...
Eu aprendi a esquecer por hora,
descobri o amanhecer que vou
e esta vontade de ser agora.
(Franz Marc)